segunda-feira, 27 de março de 2017

Vielas em Estocolmo



Juntar grana, planejar e meter o pé. #repeat

Meus últimos anos foram basicamente isso aí: juntar cada realzinho, abrir mão de saída com amigos, deixar de assistir aquele filme cinema e deixar de comprar aquela camisa maneira... Tudo para que em janeiro, durante minhas férias, eu pudesse conciliar essa paixão que é viajar a essa loucura que é a viela de roda em minha vida. Pois bem, nessa brincadeira eu já consegui chegar em Gales, França, Suíça e Alemanha. Perrengues? Sim, sempre. Frio absurdo? Lógico. Estresse em relação ao transporte do meu instrumento? Claro. Pobreza ao retornar ao Brasil? ÓBVIO. Mas pergunta se eu me arrependo? (nope). 



Dessa vez eu fui conscientemente mais pra cima, não deixei a vida me levar para só então eu ver quem estaria pelo país escolhido. Dessa vez eu escolhi alguém que eu venho admirando há pouco mais de dois anos; e deixei para ver o que o país teria a me oferecer quando estivesse lá. E olha, a Suécia não decepcionou. Nem Johannes.

No mês de janeiro tive o prazer de experimentar muitas coisas pela primeira vez: viajar num navio, ver a aurora boreal, estar o mais longe possível de casa... Já a aula com alguém que eu admiro, apesar de não ser uma primeira vez, teve esse gostinho também.  Digo isso porque tive a sorte de estudar com Johannes Geworkian Hellman, vielista das fantásticas bandas Symbio (na realidade um duo sanfona + viela) e Garizim (apenas responsável por dois dos melhores CD's folk que eu já tive a sorte de ouvir na vida). Eu já tenho alguma experiência com essas aulas intensivas que eu arrumo mundo afora, e se tem uma coisa que eu tento manter em mente é que a grande sacada de encontros como esse é você saber registrar e observar o que está sendo passado lá na hora para depois, em seu tempo, deixar tudo sync in e trabalhar com calma. Dessa vez não foi diferente. A quantidade de informações que Johannes transbordava era realmente impressionante, cada segundo em suas aulas valeu a pena e eu terei trabalho pro resto da vida. 

Nosso trabalho durou duas tardes inteiras na Royal College of Music, onde Johannes fez a gentileza de agendar uma sala. Falando em gentileza, devo ressaltar que esse grande vielista não para quieto nunca, estando sempre entre gravações e shows, o que torna os espacinhos de sua agenda bem concorridos. Fora isso, Johannes estava passando por um período conturbado de sua vida devido ao falecimento de seu pai... Serei eternamente grato por ele ter tirado um pouco de seus dias, - num fim de semana, aliás - para me dar atenção. Foram dois dias que valeram por anos, tamanha bagagem que eu trouxe de volta para trabalhar.

Fica aqui o registro de mais um divisor de águas nessa minha estrada. 



quarta-feira, 1 de março de 2017

Em Praga: conhecendo Jiří Wehle


As coordenadas para aquele dia, mais uma vez em um inglês truncado, eram basicamente as mesmas: castelo de Praga. Desta vez, entretanto, eu possuía alguns detalhes a mais; incluindo uma ladeira, uma escadaria e uma curva. Por outro lado, a razão de minha pequena aventura havia me avisado sem dó que aquele era um dia frio e ele não ficaria até tarde em seu bom e velho canto. Tocaria menos que o normal.

Naquele dia eu teria literalmente dia inteiro pela frente; e à noite pegaria um ônibus para Budapeste. Só Deus sabe quando volto aqui, eu pensei. E mesmo assim tentei me enganar numa falsa aceitação. O plano era bem simples, na real: passear pela cidade velha e fazer hora perto da rodoviária. À noite pegaria um ônibus pra Hungria e eu queria apenas relaxar. Sendo assim, subir mais uma vez o castelo de Praga envolveria algum dinheiro a mais para passagens, tempo, e sem dúvida, o risco quase mortal de mais uma vez correr por aquelas ruelas sem encontrar o bardo que há muitos anos havia me cativado em um vídeo amador gravado nas ruas de um local desconhecido por mim. O medo era grande pois no dia anterior eu já havia entrado em contato com  Jiří Wehle e tentado em vão encontra-lo pelas ruelas do Castelo, sem sucesso. E doeu, viu. Amada companheira de viagens e talentosa baixista, minha querida amiga Ana só faltou me empurrar. Você vá e rode aquilo tudo, temos tempo e você vai se arrepender se não encontrar esse homem. Então fui. E comecei minha busca a partir de uma praça diferente. A ladeira mencionada já estava diante de mim; e a  subida,  com meu bom Zigfried nas costas, ficou ainda mais pesada que o esperado.



Subi, subi, subi até chegar aos pés de uma escadaria. A curva à direita logo revelou uma ladeira ainda mais íngreme, cheia de turistas subindo e descendo. Arrisquei e dei alguns passos a frente. Já na metade da ladeira, lembrei do quão perdido eu sou no que diz respeito a direções e mapas e eu tive a certeza amarga de estar na rua errada, perdendo o precioso tempo que tinha para apertar a mão de um dos poucos seres humanos que ainda vivem nesse limiar estranho, com os dois pés no passado e a voz no presente, roubando mentes e mãos; cativando mais pessoas do que ele sabe. Voltei à escadaria, somente para paquerar a vitrine da loja de sorvete de absinto e dar meia volta. Se era pra estar errado, que eu seguisse o equívoco até o fim.


Foi entre uma música e outra que o tamanho da minha estupidez caiu sobre minha cabeça. Como numa cena de filme, meu fone silenciado deu lugar a uma corda levemente desafinada. Um som fraco, distante. Trompette. Uma voz aguda e cansada. Jiří Wehle estava mais à frente e eu gelei. 

Ao me ver me aproximando, ele parou de  tocar. Me apresentei, apertei sua mão e agradeci sua boa vontade em responder minhas mensagens. Jiří me disse que dei sorte de ter chegado a tempo, pois suas mãos já estavam bem geladas e ele queria ir embora, o inverno complica tudo, e ele fala com mais jovialidade que eu esperava. Me pergunto até que ponto estou conhecendo o músico, o bardo ou o personagem - nah, é bardo mesmo. rs Após um silêncio um tanto constrangedor, Jiří perguntou timidamente se o que eu tinha nas minhas costas era uma viela; e ficou bem animado ao vê-la, elogiando o acabamento e dizendo que a dele era bem mais simples. Ficamos alguns minutos trocando informações sobre luthiers que nos agradam e ele curiosamente me confessou que apesar de possuir uma viela feita por um dos melhores do mundo, ela não o satisfaz - prefiro isso aqui, é muito mais alto!

Nosso papo também passou por afinações e bordões que nos agradam, o que foi surreal porque eu esperava apenas ouvi-lo tocar e dar tchau. Foi então que senti que ele precisava tocar porque algumas pessoas estava parando em frente ao seu carrinho, o encorajei a faze-lo e coloquei algumas moedas em seu potinho, pedindo para que continuasse. Acenei, agradeci mais duas vezes e enquanto ele tocava tentei apreciar a vista da cidade ao som desse homem que sempre me inspirou. Me afastar mais que isso me pareceu impossível. Foi um dos momentos mais mágicos da minha vida. Como eu amo estar entre o presente e o passado - e quanto passado essa cidade tem, e como os sons produzidos por Jiří tem história. Os ecos estão ali para quem quiser ouvir.


Após duas músicas, bastou apenas eu dar um passo na direção oposta para eu me dar conta da segunda estupidez do dia: não comprar seu disco. Volto eu, muito constrangido e tento perguntar o preço do CD em questão. Como ele não possuía troco, Jiří me ofereceu um como lembrança e eu prontamente recusei. E eu lá vou desconsiderar o trabalho de um músico de rua? Troquei meu dinheiro numa barraquinha mais acima, comprei seu CD, o agradeci imensamente e segui meu caminho com o coração pequenininho e o som de sua voz se perdendo pelas ruas.

Esse instrumento é mágico sim. Não digam o contrário.

Nunca.