sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Três.


Em termos de música, antes de mais nada - e apesar da manivela tatuada em meu antebraço - eu sou um violinista; e tudo o que consegui em minha vida artística, eu alcancei graças ao violino. Hoje um instrumento clássico por excelência, o Rei da orquestra sempre causa uma impressão carregada de imagens europeias muito comuns e eruditas; o violino vem, naturalmente, carregado de pré-conceitos quase tão antigos quanto a própria música. Escrever este post, agora, soa quase como uma blasfêmia; e eu me sinto desafiando a ira de um Rei, mesmo. 

Mas é aquilo, né. Depois de tantos anos, eu ainda tenho essa curiosidadezinha aparentemente barata por tudo aquilo que é deixado de lado pela maioria. Aquilo que é lançado aos cantos escuros e obscuros de seja lá o que for sempre me atraiu quase involuntariamente. Já era assim quando percebi que não era como os outros meninos da minha turma na escola; e foi assim quando optei por violino ao não conseguir vaga na aula de violão. E foi assim por anos, enquanto eu ignorava os concertos barrocos para aprender jigs e reels de ouvido, entrando em contato com o lado mais povão do meu instrumento. É engraçado pensar que o violino um dia foi um instrumento absolutamente popular, dedicado à música profana, do povo. Eu poderia dizer que essa dualidade me encanta, mas eu estaria mentindo. Eu simplesmente prefiro esse lado mais relaxado da música. E o mesmo quase se repetiu na primeira vez em que vi uma viela de roda. Mas reforço: quase. - Com a viela, tudo foi mais forte.

E digo isso porque a viela de roda é aquela moça estranha da sua adolescência, que cresceu e se tornou uma das mulheres mais lindas que você já viu. Uma mulher capaz de fazer todos caírem aos seus pés sem terem a menor ideia de seu passado torto e repleto de rejeições. Ela é aquele homem que você considera estranho sem saber porquê; e ainda sem achar razões, sente uma atração irresistível pelo mesmo. Não tendo tido o mesmo sucesso que seu primo distante, a viela sempre acabou sendo renegada, ficando em meio ao povo e ao campo.

Ironia. Eu toco um dos instrumentos cuja reputação nobre está entre as mais inabaláveis na história da música ocidental; e tenho mil imagens associadas a ele que são transferidas a mim involuntariamente: nobreza, delicadeza, sofisticação etc. And yet, aqui estou eu, tocando o que toco. Acho que por isso sempre me senti como se estivesse vestido de uma roupa um tanto desconfortável, afinal eu o uso para tocar músicas que pertencem a um povo marcado por tristezas e crises. Eu toco música folk, dessas ditas populares, que fazem você bater seu pé direito sem perceber. Eu nunca quis usar fraque e ser spalla. E eu toco uma música que fala de danças baseadas na beleza da simplicidade; e airs que traduzem não apenas a desolação da morte, mas de amores perdidos e pessoas roubadas pelas fadas. É sempre estranho desconstruir toda realeza do violino para quem quer que seja. Talvez por isso, com uma manivela em mãos, as coisas soem mais naturais para mim. 

Na viela de roda, essa subversão não ocorre. Ela vem sim, diretamente do povo. E nunca emplacou pra valer como um instrumento respeitável - apesar de seu curto período de ouro na música barroca do século XVIII. E depois de sair da igreja, passar por vilarejos, viver um tempo em Versailles e ser renegada ao campo após a Revolução, com o povo ela permaneceu; e com seus velhos vielistas ela quase desapareceu, como um fiel cachorro-escudeiro seguindo seu dono miserável pelas ruas.

Eu hoje tenho mais orgulho que nunca, por ser um desses vielistas. E tenho sido um por três anos, completos precisamente hoje.

Por mais que a viela conquiste novos territórios  - a prova disso é o número de amigos vielistas que estão, aliás, a ponto de realizar o primeiro encontro de vielistas do meu país - e por mais que a viela, mesmo tendo sobrevivido a mais de mil anosa de estigmas e esquecimento, seja agora considerada um instrumento digno de escolha, eu sei que posso afirmar com certa propriedade que somos especiais como nosso instrumento. Não é qualquer um que se atreve a girar essa manivela.

Eu nunca me envergonhei de ser singular em nível nenhum. E apesar de não ser um fato e eu detestar generalizações; ainda me pego pensando que a atração que a viela exerce sobre pessoas incomuns é quase inegável. A impressão que tenho é que todos nós temos um "mas e se..." tatuado em nossas testas; e isso é lindo. Nossas escolhas nos traduzem; e a viela é a minha escolha que mais fala sobre mim.

Há três anos eu estava segurando minha Lyanna pela primeira vez no colo, não tendo a menor noção do porquê de eu ter lutado tanto por ela; sem entender que ela representava única e simplesmente uma coisa: minha vida.

No fim do dia a viela de roda para mim é o símbolo de um caminho único, feito por escolhas incomuns. É um prazer estar mais um ano trilhando essa jornada épica que é estudar esse instrumento. Obrigado a todos que vez ou outra passam por aqui por qualquer razão. Esse espaço, apesar de extremamente pessoal, é para todos nós que fizemos ou estamos prestes a fazer essa escolha apaixonante que é a viela de roda.

Vielisticamente,

;-)