quarta-feira, 7 de maio de 2014

Busk in Basel: meus últimos dias na Suíça



Marktplatz num dia sem feira, minha esquina
está ali naquela árvore.
Os casacos e os chapéus pomposos que se moviam dentro da loja já não me intimidavam tanto. A loja de jóias onde eles se encontravam, bem em frente ao meu banco, estava sempre cheia. Era bem pequena, na verdade. Logo ao meu lado havia uma carrocinha onde um simpático senhor vendia amendoim torrado, e nossa esquina terminava na Marktplatz, uma praça linda onde uma feira gastronômica ocorria bem em frente à câmara municipal. Era um prédio vermelho, muito característico. O cheiro do amendoim era perfeito porque todo mundo que parava para comprar seu pacotinho era obrigado a ouvir o som daquele instrumento ali.

Pouco importa se era uma quarta, quinta ou sexta-feira. Aqueles eram alguns dos meus últimos dias ali e o frio era o mesmo; na verdade era até um pouco pior naquele cantinho, onde um vento cortante insistia em passar. O frio, que até então não havia me incomodado, começava a se fazer presente. Acho que era o nervoso de estar me expondo daquela forma. Escolhi aquele banco não só porque estava vago, mas também porque o outro que estava disponível havia sido o palco de um rapaz e seu acordeon nos outros dias em que passei por lá. O meu banco era também bem discreto, não me deixando no meio de uma praça ou em um local muito aberto em que eu pudesse pegar chuva. Numa cidade tão certinha, só pega chuva quem quer.

Em Basel há toda uma organização (oh, really?) com relação à arte feita nas ruas. Há normas feitas especificamente para os músicos, que devem mudar de localização após uma hora tocando, respeitando a distância de outros músicos e levando em conta os horários específicos para o busking. Ainda assim, cada cantinho tem o seu músico de cativo, pelo menos em determinado horário, o que é bem interessante. Lembro da moça tocando flauta transversa na porta de uma loja de perfumes, do senhor do leste europeu tocando saxofone perto de um Mc Donnald's - ele certa vez atravessou a praça só para me alertar sobre o horário e as multas que eu pagaria caso fosse pego - e lembro do carinha hippie tocando um violão muito velho e tosco numa travessa. Havia uma cumplicidade nos olhares que trocávamos, reconhecíamos a dor e o prazer do que estávamos fazendo (eles, obviamente, muito mais que eu). Eu queria ter conversado com todos, mas sou tímido demais para isso. É engraçado, na verdade Os músicos de rua são admirados por toda a ideia romântica que os cerca. São trovadores. Mas ái daquele que decidir isso para sua vida. É estranho e fascinante, no fim. Eu amei todas essas pessoas, mesmo eu não sendo músico de rua. Na verdade nunca o fui. Era tão óbvio que eu vinha de longe. Um dia um rapaz carregando um alaude me viu no ponto de ônibus e mal disfarçou seu olhar de mas quem é esse? E olha que ele era um dos músicos da Schola, e não um dos músicos que tocavam na rua.  Eu não estou acostumado a tocar sem meus companheiros de banda porque me sinto nu, extremamente exposto. Amo e talvez precise de meus amigos ao meu lado fazendo música comigo. Em Basel não foi diferente, mas o frio na barriga que me atingiu após eu ter conseguido o panfleto informativo para músicos de rua não me impediu de tentar. Mesmo que ninguém soubesse, aquela cidade pertencia a mim e minha viela, pelo menos por aqueles dias.

Baffusserplatz
O primeiro dia foi estranho, saí cedo, pouco antes do almoço e da minha aula, só para estudar e procurar meu futuro spot. Sabia que seria em uma praça porque praças são lugares onde as pessoas normalmente circulam. Ainda mais em Basel, em que esses espaços são efetivamente utilizados e explorados de todas as formas possíveis e imagináveis, nem que seja apenas para acolher uma obra de arte, como uma escultura ou o que for. Por puro comodismo escolhi a Baffusserplatz, uma espécie de centro da cidade por onde quase todos os bondes passavam inevitavelmente. Me pareceu um lugar promissor, então comecei por lá. Fazendo um som pro pessoal que estava indo para o trabalho, pra escola etc. Foi bem desconfortável porque meu banco estava meio molhado, e as pessoas não prestaram a menor atenção. Eu já esperava por isso porque né, estamos falando de uma cidade extremamente cool. A cidade onde encontramos a maior escola de música antiga do mundo. Eu já imaginava que por lá a viela de roda não fosse ter um impacto muito grande. Percebi isso no dia em que vi um cara pegando o bonde, casualmente carregando o estojo épico de um theorbo como quem carrega um violãozinho nas costas. Oh, well. Fiquei um pouco lá, bem frustrado e obviamente ignorando o óbvio. Eu estava tão preocupado com o que iam pensar de mim, tão assustado com os olhares dos adolescentes, me perguntando se achariam graça, que esqueci de sentir o que eu estava tocando. Eu estava com medo de passar a maior vergonha quando o foco deveria ter sido sentir o que tocava. 

Mas Basel me inspirava a andar. Aliás, Basel me inspirava. Ponto. Com ou sem o estojo da viela nas costas, eu subia e descia suas vielas (no pun intended), fuçava cada vitrine e tirava foto de cada detalhe. Após algumas muitas idas e vindas da casa da Tobie, pude achar meu banquinho em frente à joalheria quase que por puro acidente. Então estava decidido, no dia seguinte, após meu tempo de estudo em casa, eu voltaria ali. 

Comecei tímidamente, porque estamos falando de uma cidade extretamente antiga, mas ainda assim, como disse, cool de uma maneira moderna. É quase uma cidade hipster, se pararmos para pensar na quantidade de nacionalidades que circulam por lá e na harmonia com a qual os jovens e os mais velhos se misturam naquele ambiente. Inspirado por esta energia boa e acolhido por um cantinho mais obscuro de suas ruas, comecei com tunes em sol porque os bordões soam bem e não ficam tão altos (eu não queria chamar atenção de ninguém). Para minha surpresa, logo se aproximou uma mãe com duas crianças e ela, da forma mais fofa da face da terra, mandou seu filho mais novo (um bebê!) vir até meu estojo e colocar no mesmo dois tímidos francos suíços. Meu dia já tinha sido decretado um sucesso ali. O sorriso no meu rosto só foi quebrado minutos depois, quando um casal francês - diretamente da Bretanha - me abordou. Me elogiaram bastante e ficaram atônitos quando falei que vinha do Brasil. Com uma viela que veio, por sua vez, de Gales. Jamais saberei ser gringo. Me senti um alien.

Além dessas pessoas fantásticas, outras dezenas passaram e deixaram suas contribuições, fossem elas um sorriso, uma pergunta, uma moeda ou apenas uma foto tirada de mim e minha Lyanna. Isso significou tanto para mim. Mas tanto. Acho que o sentimento de estar fazendo o que mais amo tão longe de casa, numa esquina qualquer daquela cidade, é algo que ainda não consigo colocar aqui. O frio nos meus dedos já não existia mais. A timidez, a insegurança, o medo, nada disso importava naquele momento. Era eu e minha viela ali, fazendo música numa cidade que é nada mais nada menos que arte.

A sensação que eu tinha é que tudo o que eu vivi a vida inteira teve que ser como foi para que eu estivesse exatamente ali. A viela é a viela em qualquer país, pensei.  A paixão que ela desperta aqui é a mesma que ela desperta lá, por mais que um ou outro na Europa a conheçam como vielle à roue ou ghironda.

Após ser alertado pelo meu companheiro do outro lado da praça, eu nem procurei outro ponto para tocar. Apenas peguei alguns trocados dos francos que faturei, comprei um café e fui andar pela beira do Reno. Fiquei quase duas horas por lá, apenas andando, já tentando me despedir de tanta coisa ao mesmo tempo. Tocar na rua para mim nunca foi uma questão de ganhar dinheiro. Eu queria apenas consolidar minha existência nessa cidade que me tocou de tantas formas, retribuindo tanta magia e tanto encanto vividos por um mês.

Me sentir em casa mesmo estando do outro lado do oceano é algo raro para mim. E nada naqueles prédios soava estranho. Nada naquelas ruelas, nada naquelas fontes de dragão soava estrangeiro. Suas pontes, seus moradores, seus bondes e seus músicos de rua, tudo, tudo, tudo, convivia de forma harmoniosa aos meus olhos. Ter estudado com a Tobie Miller, cuja paciência e o profissionalismo deixaram resultados permanentes em minhas mãos, foi algo indescritível. Ter participado da session também. Ter ido ao topo da Europa, subido montanhas descomunais que passavam por vales e sentir que olhei nos olhos de Deus... Nada vai me fazer esquecer nada disso.

E sabe de uma coisa, a viela é meu instrumento mesmo. E eu afirmo isso porque há uma imagem que não sai da minha cabeça, que é a imagem de mim mesmo sentado no banco do conservatório em que estudei no dia da prova de admissão. Lembro de ver um rapaz um pouco mais novo que eu tocando Bach divinamente, de uma forma tão energética que deveria ser inspiradora. A inspiração, nesse caso, nunca veio. E tudo o que eu pensava naquela tarde era que eu nunca seria assim. Era meio que uma sensação de perder um jogo antes mesmo de começar a jogar.

Não existe isso aqui com minha viela. Eu voltei para o Brasil feliz justamente porque a cada vez que vejo um grande músico deixar uma viela em chamas, eu sei que não é uma questão de se, mas sim uma questão de quando eu tocar assim. E eu acho isso o máximo. =]

Meus dois francos estão guardados para sempre.

Basilea no fim da minha última tarde por lá