domingo, 30 de março de 2014

A Mão Direita

Imagem tirada do livo La Vielle Et L'univers de l'infinie Archet, do Valentin Clastrier

Se há uma coisa na qual todos os vielistas concordam, esta coisa é a dificuldade da técnica da mão direita. Ela é complicada porque precisamos fazer pequenos movimentos (golpes) com a palma da mão fechada, utilizando tanto a palma da mão em si como o polegar, gerando aquele bzz bzz característico da viela, que leva o som do instrumento a um outro nível, realmente. Eu nunca imaginei a importância que a forma como eu seguro uma maçaneta teria em minha vida, e se você está lendo isso, eu imagino que também seja o seu caso.

Pois bem, esse assunto é complexo, porque  - NEWSFLASH - cada músico, no final das contas, encontra o seu jeito mais confortável de acomodar sua mão na maçaneta, atingindo um melhor controle do instrumento. Bom, isso quer dizer, basicamente, que o seu jeito de executar os coups de poignet (golpes de pulso, na tradução literal) vai depender de: 1) o tamanho de sua mão 2) o tamanho da sua maçaneta (isso soa estranho, sorry) 3) o tamanho da roda do instrumento (já que isso afeta a circunferência onde os [a princípio] quatro pontos da roda se encontram.

Para ser sincero, eu não tenho a menor pretensão de dar uma aula de coup de poignet aqui, porque ainda estou aprendendo e porque a internet nos oferece grandes mestres abordando o assunto de maneira didática através de vídeos informais ou vídeo-aulas como a famosa Zanfona Sen Palabras, do Oscar Fernandez ou as aulas do Alexis Vacher, para os francófonos. Então depois de pensar bastante, achei que o mais válido seria falar da minha experiência pessoal com a Tobie Miller, porque suas aulas foram realmente um divisor de águas nessa minha estrada; e embora eu ainda não esteja da forma ideal, eu já entendi por onde seguir para chegar onde quero.

Bem, antes de mais nada, para aqueles que ainda não estão 100% familiarizados com a relação entre a manivela e o trompette, segue uma foto:

Hurdy-Gurdy Method, da Doreen Muskett
Existem esses quatro pontos principais da roda, pontos que podem ser "acionados" através de leve golpes que damos na maçaneta da manivela para gerar um som extra no instrumento. Esses pontos são fundamentais para colorirmos certas músicas; e cada ritmo musical (bourrée, scottish, valsa, polka etc) vai exigir uma combinação mais ou menos diferente de golpes. Por exemplo, num bourrée, os pontos 1 e 3 seriam seu ponto de partida, já que uma vez que estejamos à vontade tocando a gente pode incrementar esses golpes, e usar e abusar de suas intervenções. É quase como se estivéssemos tocando dois instrumentos ao mesmo tempo. =)

Anotações by Tobie Miller (Y)
Também é bom notar que nós vielistas geralmente usamos uma notação específica para praticar apenas os coups, e essa notação é 90% das vezes baseada apenas em números, principalmente porque muitos vielistas vem do universo folk/trad, e não necessariamente sabem ler/escrever música. Claro que se você sabe ler partitura a coisa fica mais fácil, porque estamos o tempo todo lidando com divisão de tempos e pausas, como vocês podem ver na foto ao lado. De qualquer forma, não sou o maior leitor de música que vocês já viram (eu sou bem emperrado, na verdade), e para quem acha que não tem muito ritmo pegar os golpes de vista/ouvido pode ser um bom exercício, e foi justamente assim que comecei a internaliza-los nesta última viagem que fiz à Basilea.

Tobie me ensinou primeiro o Bourrée de la Plaix, e já nessa música percebi o padrão através do qual eu deveria estudar. É uma espécie de rotina que usamos nas músicas que trabalhamos enquanto estive em Basel, a saber:

1) Antes de mais nada, aprenda a melodia. Seja de ouvido, seja lendo a partitura; aprenda de modo que você consiga tocar sem precisar ler. Sabe quando você toca algo tão naturalmente que consegue falar e tocar ao mesmo tempo? Nem eu, mas é por aí.

2) Uma vez que a melodia esteja bem internalizada, vamos deixar a mão esquerda descansar e focar na mão direta. Apenas na direita, faça o ritmo que a melodia pede. No meu caso a primeira música que trabalhamos era um bourrée, então eu teria que trabalhar com os pontos 1 e 3, basicamente. Algo meio 1,  1-3, 3-1, 1-3  (ummm * um-três  * trêsummmm * um-três), como numa valsa. Depois a coisa ficou um pouco mais complexa, mas não cabe aqui porque isto é um blog. Talvez lá pra frente, num vídeo. 

3) Agora você deve cantarolar a melodia que aprendemos no passo 1, enquanto gira a manivela no ritmo desejado. Faça isso exaustivamente, novamente, de modo que você consiga faze-lo sem pensar muito no fato de estar fazendo duas coisas distintas ao mesmo tempo. Essa é, provavelmente, a parte mais importante desse processo.

4) Finalmente, toque a melodia acompanhada do ritmo. Vale a pena diminuir um pouco a velocidade num primeiro momento, para que tudo se encaixe de forma não muito afoita.

Esses quatro passos foram seguidos a risca por mim, e a Tobie me deixava quanto tempo fosse necessário neles. Me lembro de uma aula em que estávamos trabalhando outra música, no caso um pouco mais complicadinha, e  fiquei tanto tempo nos passos 1, 2 e 3 que tivemos que deixar para terminar no dia seguinte.

Na verdade, essa é a chave do mistério: repetição. Você precisa fazer de novo e de novo e de novo, até atingir aquilo que quer. Tobie me mostrou que é possível fazer isso com calma, porque é uma questão de tempo, mesmo.

Um ponto importante para mim foi como o meu ponto 1 na roda - e provavelmente o de todo mundo - tem que ser muito bem medido, dependendo do ritmo que quero tocar. No bourrée, por exemplo, meu 1 podia ser mais livre, não precisa ser muito controlado. Já numa scottish, ritmo que nos permite usar os quatro pontos da roda, o meu 1 tinha que ser bem curtinho, para que eu tivesse tempo de chegar no ponto 2 com espaço suficiente para faze-lo soar e, consequentemente, chegar no 3 e no 4. Entendem como isso pode ser complicado? Pois é.

Outra coisa fundamental e life chaging foi a noção da roda da viela como uma roda no ar. Tentem imaginar a roda como um círculo girando no ar, diante de você. Você obrigatoriamente tem que passar por todos os pontos dessa circunferência, a cada revolução. Isso exige uma certa memória/noção de espaço, para saber exatamente em que ponto a sua mão está passando em cada nota da música. É essa noção de totalidade que a Tobie me passou e abriu um mundo de possibilidades.

Os coups não são nenhum mistério, os pontos estão todos ali, a gente só precisa achar a nossa própria forma natural de toca-los durante uma música. Eles estão ali para te servir, para embelezar sua música. Seu dever, consequentemente, é poder aciona-los sempre que quiser.  =)


Vielisticamente,

Rique

sexta-feira, 14 de março de 2014

Basilea e Tobie Miller: primeira aula


Esse ano escolhi estudar com a Tobie Miller não apenas por ela ser ~A Tobie Miller~, mas pelo fato de se tratar de uma musicista que chegou na viela de roda através da música antiga - isso quer dizer, de certa forma, que ela é alguém que chegou ao instrumento pela veia mais "erudita" da coisa; e não pelo mundo da música folk/tradicional.

Ano passado, quando estive com o Laurant Bitaud, lembro de ser diariamente liberado do "fardo da tradição" por ele, que cismava que por eu ser brasileiro eu teria a liberdade para fazer o que eu quisesse com o instrumento. Eu até gosto (muito) desse discurso, mas a verdade é que para a gente ir contra uma tradição temos conhece-la a fundo e saber, de fato, a que estamos nos opondo.

A caminho da aula, dragões. #Khaleesi
Fato é que não é esse o meu propósito. Amo a música tradicional e, mal ou bem, meu foco é esse. É pelo menos uma fonte da qual procuro beber constantemente e esse ano, na verdade, isso pouco importou.

Em relação a tradições e à nossa liberdade artística, com a Tobie o buraco é mais embaixo as coisas são um pouco diferentes. Eu já imaginava que alguém do mundo erudito seria mais firme em relação a estudos (não me levem a mal, conheço mil pessoas do mundo trad que são extremamente disciplinadas e não deixariam de estudar por um dia sequer. beijo, Kevin, meu amigo e colega de banda) e no fim das contas, apesar de ter aprendido MUITA coisa com o Laurent, era exatamente disso que eu precisava: alguém que não se importasse com o fato de eu ser ou não parte de uma tradição, alguém que não estava muito ligado no fato de eu ser fluente na linguagem em questão ou não. O foco da Tobie era apenas me fazer tocar e deixar os movimentos da minha mão direita tão naturais quanto os da esquerda. Percebi isso logo no nosso primeiro encontro. Aliás, nessa minha primeira aula eu cheguei super assustado e fingindo que não tinha chegado na vizinhança 30 minutos antes do horário marcado. Se já sou awkward no Brasil, imagina na Suíça. Ainda assim, foi tudo maravilhoso, superando minhas expectativas.

Saber quem alguém é através de vídeos e depois conhecer pessoalmente já é, por si só, uma experiência interessante. Conhecer e admirar alguém de vídeos do youtube por anos e depois ter aulas na casa dessa pessoa, do outro lado do planeta, beira a surrealidade. Tobie foi super solicita e amistosa, literamente uma fofa, com suas pantufas e sua voz baixinha (e sim, ela parece uma pintura barroca que ganhou vida). E nosso primeiro encontro, apesar de suas curiosidades sobre minha viagem e minha história. foi quase todo voltado para o set up do meu instrumento, que tinha acabado de voltar de um reparo.

Magic happens.
There's no reason for you not being able to play a note. Foi o que ouvi quando falei que pensava que não conseguiria nunca executar certas notas mais agudas. A Tobie me dava uns dados assim, com um ar que no fundo, no fundo, parecia dizer oh, you poor summer child... ahaha Mas o que me deixou mais impressionado nela não foi nem a destreza de suas mãos, nem a sua didática maravilhosa, mas sim a atenção dada aos detalhes. A precisão dela em reconhecer e encontrar problemas no meu som era bizarra, sem mais. 

Eu tocava uma nota e ela sabia se o que faltava era algodão, resina, pressão da corda na roda ou - pasmem - a espessura do vão por onde a corda passa. No cavalete. Sério, como assim? Fiquei boquiaberto quando ela simplesmente foi cortando, colando e lixando pontinhas de palitos de dente para deixar o vão do meu cavalete mais estreito para a chanterelle aguda. E foi exatamente o que resolveu alguns, ou melhor, todos os meus grandes problemas.

A viela de roda tem dessas coisas, né. Cada um toca um instrumento feito por uma pessoa, com cordas diferentes, resina diferente, algodão diferente e medidas diferentes. Quantidades, manias, estilos... Tudo influencia o som e não há regras no sentido estrito da coisa. É muito legal ter estado ao lado de alguém tão lúcido e sagaz no que diz respeito à manutenção de uma viela. E a dica fica para vocês: nem sempre dobrar papelzinho embaixo da corda dá jeito. A técnica do palitinho foi um achado, porque tentei de tudo nessa vida: papel, cartolina, plástico... E nada funcionava. Além disso, é praticamente um fato que depois que a coisa é feita você nunca mais vai precisar passar por isso novamente. 

Outro ponto interessante foi ver que a resina que ela usa no algodão das cordas dela é em pó (da pirastro, podem porcurar). Confesso que eu ia morrer sem saber que isso existia, e é muito útil porque desta forma a resina é seca sem ser em pedra (não danifica a roda); e utiliza-la não é tão perigoso para a madeira como a resina líquida. (falando em resina, a Tobie fabrica sua própria resina líquida, triturando a resina em pedra e misturando ao álcool. Ok que não é uma necessidade porque podemos comprar, mas ainda assim! I mean. Badass.)

No fim das contas, nosso primeiro encontro se resumiu a deixar o som da minha viela mais apresentável (o que de fato ocorreu) e a começar o ritmo de bourrée na mão direita.  E falamos sobre o equilibrio entre presão, resina e algodão. Foi bem, bem, BEM esclarecedor.

S2
Resumindo: Tentem a resina em pó, por favor! E prestem atenção na forma pela qual as cordas estão atravessando o cavalete. Vez ou outra, não conseguimos o som que queremos das cordas cantoras por causa de algodão e resina, mas no meu caso, minha cantora aguda não estava soando tão bem porque estava muito solta no cavalete. Vale realmente a pena dar uma olhada em sua viela e ver como é a pressão da corda na roda. Me parece que para as cordas agudas, menos pressão (na medida certa, é claro) facilita muito a vida, já que o som não fica arranhado e tudo parece mais leve - o som, principalmente.

Vou dedicar meu próximo post somente ao que eu e Tobie falamos e fizemos sobre a mão direita, utilizando a boa e velha "notação numérica" (1, 2, 3 e 4) para se referir aos pontos da roda.

Até logo, então. ;-)

Vielisticamente,

Rique